Archive for the 'minitecido' Category

26
maio
11

o jardim não precisa de mim

Tenho um jardim por pura sorte. Há uma dama-da-noite que briga para dominar uma palmeira, uma samambaia exuberante trazida por passarinhos, vidas minúsculas, uma planta rasteira que se tem como daninha, mas parece um buquê de noiva. Percebo floradas e recuos parecidos com os da escrita, mas não vou ser brega agora, uma vez que flores com literatura já dão enjôo em estômagos mais requintados. Agora, o meu espanto é que tenho um borboletário, esse borboletário é uma árvore, um manacá-de-cheiro. Ele dá uma flor azul-arroxeada que vai clareando até ficar branca. Bem parecido com meu olho esquerdo que vai do castanho-escuro ao claro a cada irritação. A flor tem cheiro de mel com leite, a árvore fica carregada de lagartas, carregada mesmo, a ponto de as folhas verdes ficarem pela metade, quase todas.  O manacá é a única fonte de alimento dessas lagartas que se transformam na borboleta-do-manacá. Minha árvore fornece borboletas aos vizinhos. Se alguma aparecer em sua janela, ela pode ter nascido no meu quintal, trate-a bem. Acabei com muitas lagartas até perceber, por aquelas que sobreviveram à minha tesoura, que elas eram donas e não intrusas. Hoje deixo as lagartas entrarem em casa até que elas achem um canto seguro. Já acordei com duas borboletas, ainda úmidas, tentando achar a saída, abro as janelas da sala e elas vão embora. De fato, da vida delas eu só acompanho o seu sono de beleza. Soube que podem voar grandes distâncias, a cópula se dá violenta, os ovos ficam no manacá e tudo começa outra vez. Ainda não vi as cópulas, talvez aconteçam nas madrugadas em que a dama-da-noite entra no cio, ela faz o prédio tremer. Há mais borboletários pelo bairro, vira-e-mexe alguma aparece no muro, rodopia em volta de um vaso e espera que eu a fotografe.

Eu não interfiro no almoço.

A árvore fica com todas as folhas irregulares, as lagartas comem feito gente.

De barriga cheia, procuram um lugar seguro para o grande sono.

Pode ser na palmeira.

Debaixo da janela.

Na própria árvore onde comeu.

Ou na minha sala.

Com a supervisão do peso de porta.

16
maio
11

coração por inteiro

(crônica publicada na Revista do Brasil, maio de 2011)

Soube que seria tia pelo telefone, mal conseguia falar com meu irmão, tamanha euforia, lembrei dele ainda bebê em meu colo. É impressionante como os ciclos naturais são imbatíveis no quesito preenchimento existencial. Passado o alvoroço, meu irmão começava a se abater com preocupações referentes ao convênio médico e aos procedimentos a que seria submetida a minha sobrinha, a Lorena. A pequena havia sido diagnosticada, ainda no ventre materno, com uma malformação cardíaca. Em português claro, ela não tem uma parte do coração, mas para nosso alívio o problema pode ser corrigido com três cirurgias.

Lorena nasceu e foi direto para a UTI, preparar-se para a primeira correção. Frequentei a sala de espera do hospital por quase um mês, olhando-a pelo vidro, enquanto meu irmão e minha cunhada ficavam lá dentro. Observei outros pais de UTI, casais que passam semanas ou meses aguardando o tempo próprio da recuperação. Tudo isso envolve tristeza, e não tenho como provar o quanto isso tudo também é seu oposto, um grau da alegria. Mas como? Por uma simples razão: o corpo tem defesas que a emoção desconhece. O corpo traz a sensação do sentimento, é a expressão dele, as mães choram sem teatro. Um choro pequeno que o cotidiano trata de torná-lo simples, uma manifestação necessária.

Neste momento, Lorena está em casa, já dormiu sobre a barriga dos pais, e presenciei minha mãe tornar-se avó na primeira vez em que ninou a neta. Não há vertigem mais radical que essa, as histórias dos corpos com seus códigos genéticos e amorosos se aflorando na ausência, nesse caso, de um pedacinho do coração da Lorena que só não está manifesto, mas já está refeito em nosso colo. Um coração aristotélico que, se não está em ato, está em potência.

Os pais de UTI recolocam os problemas rotineiros em seus lugares reais, a saber, na área de serviço, e não mais na sala de estar. Não se trata de camuflar uma questão menor pela maior, é uma assepsia do pavilhão emocional. A UTI não é terapia de amadurecimento, evidente, embora isso aconteça. A minha descoberta é que a UTI não é o lugar de quem está em vias de perder a normalidade dos dias nem sinal de fracasso ou perturbação da realidade – ela é passagem e, como tal, transitória e fluida. O que mais me impressionou nas mães é que elas suspendem o tempo habitual, o dos relógios, para entrar no tempo da recuperação, no tempo da vida, das profundezas celulares, no mistério maior.

Nesse ambiente é oferecida ajuda psicológica, que nem sempre socorre, embora seja fundamental. Em alguns casos, tratam as mães como doentes emocionais, dão nome à coisa ainda disforme, sentimentos fortes prontos para receber significados mais leves, e não técnicos. Mas mãe também é mãe de si e se protege. No que uma psicóloga se aproximou da minha cunhada, dizendo fazer parte de um núcleo de pesquisa do luto – só a apresentação dá calafrio –, ela logo se defendeu: “Não quero, obrigada”. Talvez a tia aqui também precise de psicólogo. Por enquanto, o amor tem feito seu trabalho.

07
abr
10

camping calamares, Bolaño é meu

livro de ensaios sobre o chileno que inclui o documentário Bolaño cercano

Há alguns meses pediram-me um conto para uma antologia bem interessante (deve estar chegando), um dos personagens deveria ser um autor morto. Não tive dúvida, Roberto Bolaño seria meu eixo. Devo a ele uma experiência de leitura fora do comum. Há leituras abismadas pela linguagem, pelo enredo, pelo realismo, ora pela transcendência. Bolaño é outra coisa, talvez uma taça de bile.

Abaixo, um trechinho do conto, minha homenagem ao chileno.

Camping Calamares

Conheci o Bolaño num camping do litoral sul de São Paulo. Ele cuidava da segurança, como se isso fosse possível. Ao entrar, acertei o adiantamento com a dona, de cara achei que o chileno dava uns pegas na Judite Calamares. Os óculos, sempre engordurados, me intrigavam. Se a visão ficava embaçada com ou sem, pra quê o vidro na cara? Hoje entendo. Bolaño não gosta que vejam seus olhos, tudo bem que o fígado amarelou os globos, é que a questão não era estética, mas latina. Assim o olhar ficava à paisana, sem farda, sem o compromisso de ter visto.

Disse a ele que estava grávida em maio, em agosto morávamos os dois no camping, éramos zeladores. Judite Calamares passava os dias da semana na capital, onde comprava tela para mosquito, repelentes e visitava um parente no hospital. Voltava antes do final de semana, cheia de sacolas, umas louças vagabundas que vendia para as mulheres dos pescadores. Bolaño me disse que ela vendia maconha jamaicana, eu duvidei, mas depois de ver a gorda pingar um abridor de apetite infantil na bebida de outros gordos, e mandando que eu levasse as bebidas, bom. Pingou na minha frente, pensei, Judite Calamares vende maconha jamaicana, mas não fuma, se fumasse, estaria sentada com os turistas e comendo os bolinhos que eu fritava. Para o segundo desvio, basta o primeiro.

Bolaño olhava para o mar como se aquela água toda coubesse num copo. Acho que a maconha jamaicana não fazia efeito nele, e como evitava beber por conta do fígado, ele foi ficando um perfeito vigilante noturno. Ainda que cochilasse a madrugada inteira, tinha uma ruga na testa que imprimia atenção.

05
fev
10

Ela é o abajur da mãe, quebrantável ao mínimo vento, segurando a luz alheia sem jamais ser a própria. O marido se protege dela, porque essa delicadeza toda pede tributo de grande lustre. Espera a limpeza de sua tez que é feita por alguém, a porcelana deve resplandecer o trabalho pago. Uma corte se faz em torno do abajur, ex-fumantes e quem teve o nome bordado em enxoval nunca usado à altura do tecido. A corte existe para apertar o interruptor, o marido para rachá-la com um esbarrão, a empregada para espanar o pó compacto. O abajur usa bons dentes e falha da mesa de canto.

22
dez
09

horóscopo chinês 2010

Pois é, 2010 é ano do tigre. Sou coelho no chinês, quer dizer, é bom que eu fique na toca e só saia nas horas do sol ameno, porque uma só patada de tigre seria suficiente para acabar com a festa. A patada do tigre não é por mal, é puro design, é a consequência de sua estampa. Acredito em horóscopo no momento da leitura, terminada, esqueço e saio da toca ao meio-dia, hora da menor sombra. Inegável que 2010, com eleição e Copa, promete competição, carrinho, chute no saco e a troca de seis por meia-dúzia.

Para você que é Coelho

Solução? Isso:

Fingir que também sabe dar patada.

Há outra maneira de o coelho levar o ano do tigre, fazer amizade com ele assim que o ano nascer, no dia 14 de fevereiro, data do reveillon chinês.

Avante, senhores!

Feito o diagnóstico para o coelho, agora arriscarei uma previsão para cada signo.

Para você que é Rato

O tigre se aborrece com suas fugas e camuflagens, procure manter-se no lugar, mas não no centro.

Melhor atravessar o ano de forma visível, para isso, procure proteção de um superior.

Para você que é Boi

Cara, você é maior que ele, seja homem!

Levante daí, porque não é só o tigre que gosta de você.


Para você que é Tigre

Ambiente familiar tranquilo, tédio ao entardecer.

Alguém surgirá em sua vida e o fará repensar seus princípios.



Para você que é Dragão

Tigre e você é um clássico, o casal, a lenda.

Nesse ano, o tigre estará muito ocupado, evite o ciúme e a voadora.


Para você que é Serpente

Finalmente alguém que inspire tantas tatuagens quanto o tigre, procure sobressair-se.


Em outubro, não fuja do embate.



Para você que é Cavalo

Com um pouco de disciplina, carregará o ano nas costas.

Os meses de abril e outubro prometem novas alianças, vida social agitada.

Para você que é Carneiro

Assim como nos anos anteriores, pastará em conjunto.

Alguém de tigre o procurará no escritório, evite fofoca.


Para você que é Macaco

Um ano em que a parceria com o tigre durará enquanto houver favores.

Já em abril, poderá revelar uma disposição mais autônoma.


Para você que é Galo

Será preciso redimensionar o ego.

Sentimento de inadequação em julho.


Para você que é Cão

A força estará com você no ano do tigre.

Em março, o tigre estará ainda mais generoso.


Para você que é Porco

O tigre é grande, mas não é dois, drible-o com coragem e usufrua o que puder.

Trabalhará muito, mas antes de ter uma estafa, o ano do tigre já estará indo embora.


O post virou palhaçada, mas era só pra dizer que te desejo um 2010 de colheita farta, com os silos até a borda para as próximas décadas. Até já.

14
dez
09

foto: Erich Hartmann

Quase férias da PUC, quase terminando um conto em que um personagem deverá ser um autor morto, no caso, escolhi Bolaño, no começo de outro conto, também por encomenda, esse deverá ser imenso, eu tô exausta, ler filosofia seca a água craniana e não te traz de volta algo que amacie, pelo contrário, não há como enfrentar David Hume, entre causa e efeito não há conexão infalível, ano que vem sairá meu primeiro infantil que se chama Irmãs de Pelúcia, deve sair também meu primeiro romance, Os Malaquias, deve sair também minha primeira novela, Sofia, o cobrador e o motorista, deve sair também meu primeiro exame de sangue com os hormônios tranquilos, deve sair também umas baratas do ralo no fosso, agora moro no subterrâneo com vista para uma copa frondosa do Sumarezinho, final da Doutor Arnaldo, continuação da Avenida Paulista, sairão muitos cabelos brancos a fim de combinar com manchas brancas na canela, mancha senil, Andréa?, aos 34?, é, minha filha, siga em frente e não pergunte nada, nem ao David Hume, porque até a indução está comprometida, das ideias particulares para as gerais há um mistério que se chama invenção, a literatura é bem mais modesta que a filosofia, na copa frondosa do Sumarezinho há maritacas, as maritacas cagam no quintal, as baratas devem sair do fosso antes do Natal, fui grossa com uma adolescente de cabelo oleoso, eu devo viajar com a família inteira se uma pedra de trinta toneladas puder ser dinamitada e liberar a estrada, porque se aquilo que duvida da razão é justamente a razão, como pode-se levar a sério a dúvida?, assei um puta cupim hoje no almoço, com sal grosso, xarope de chá argentino e azeite, arroz branco, vagem assada e sobrou sorvete do domingo, tô esperando um texto de Portugal, comprei um ferro e usei roupa amassada, para dar um pouco de cretinice ao David Hume leio Tititi, meu marido usa panela de pressão com dois mecanismos de segurança e ensina artes marciais, acabei de varrer o quintal, tomei muito suco de melancia no intervalo da faculdade, a ficção científica se leva mais a sério que a ciência, achei que a verdade fosse provisória também na ficção, mas tenho certeza que a certeza é provisória, vou passar henna no cabelo, tenho feito posturas psicofísicas na Rua Monte Alegre, dei busca no nome do professor, a senha desse cartão não vale mais, minha irmã agora é editora num jornal, meu irmão comprou um colchão de mil reais, o pé do meu pai desinchou e minha mãe está escondendo alguma coisa, o marido me chama na cozinha, não atendo telefone, que horas são?

04
dez
09

um

Existe um único sentimento, dele saem outros. Feito a ilusão das sete cores que traz o espectro solar, essa evocação obsedante. De modo que o amor é transparente, luz não é cor. De modo que amor não é do jeito que chamamos, ele não vem. Ele fica lá. Amor é uma distância, o intervalo entre nós e seu centro. Ficamos longe porque se orbita sendo menor que a força. Estamos em órbita pra seguir o ritmo, não pra ditá-lo. Se amar, não se mova.

Miniconto publicado num quadro, ocasião em que estive longe da internet, é um quadro-post.

21
out
09

Meu blush são duas bofetadas.

greta-garbo-real-name-greta-lovisa-gustafsson-swedish-actress-in-a-scene-with-conrad-nagel




delfuego@uol.com.br

Eu voo com um peteleco.

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