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Estou no quarto período de Filosofia. Quanto chão pela frente, quanto horizonte vislumbro daqui e que jamais alcançarei, e jamais teria sabido de sua infinitude não tivesse vindo bisbilhotar. Nos três primeiros períodos, fiz de seis a oito disciplinas, o que me deixou exausta e ao mesmo tempo excitada. Nesse semestre, resolvi pegar leve para dar conta dos compromissos fora da faculdade. Estou fazendo apenas duas disciplinas: Estética e Teoria do Conhecimento. Em Estética, tenho aula com o húngaro Peter Pál Pelbart, e em Teoria do Conhecimento com o uruguaio Mario Ariel González Porta. Com o Peter, estamos vendo Roland Barthes. Com Mário, estudamos Kant e afluentes. Peter, que foi aluno de Deleuze e de Foucault, no primeiro dia de aula pediu-nos que o ajudássemos na manutenção do ambiente, isso significaria manter a sala em estado de kairós. Ou seja, um estado que propiciasse o surgimento do imprevisto, que a coisa certa no momento certo rompesse a estrutura rígida da sala de aula. Quase ninguém entendeu isso, como já passei por coisa parecida em sessões de delírio religioso, basicamente estou em casa. Já com o Porta, o delírio ocorre na caudalosa exposição da história da filosofia, do contexto kantiano, do iluminismo racional, passando pelas físicas de Descartes, Leibniz e Newton. Saio dessa aula como se tivesse participado de um triátlon. Com Peter, trata-se de uma espécie de oficina de filosofia, uma busca pela percepção de uma ou outra palavra que possa alimentar um discurso ou um pensamento, é a pescaria do dia. Professor, a linguagem é construção humana ou algo transcendente, que se pode acessar? Ele responde: não importa a origem, o problema é que o homem não a domina. Com Porta, uma rede é jogada no passado da lógica e devemos contar e catalogar peixe por peixe. Professor, transcendental é a nova metafísica? Ele responde: transcendental do ponto de vista de quem? Juro, minha vontade é sair de uma sala de aula e entrar em outra, ininterruptamente. Em Estética, estamos no ponto onde Barthes diz que não há nada fora da linguagem, a língua tem um caráter fascista, sendo a literatura um afrouxamento dessa tirania dentro da própria linguagem. Em Teoria do Conhecimento, a física mecanicista de Descartes versus a física dinamicista de Leibniz. Para o primeiro, corpo é extensão, não há espaço vazio e sim corpúsculos que se tocam, há um corpo/extensão matematizável. Para o segundo, o corpo é um fenômeno da força, e não substância em si. Newton deixa os dois falando sozinhos e não se pergunta pela razão do movimento ou da força, ele passa simplesmente a descrever os fenômenos. Onde Kant entra na cena? É a promessa do Porta para a próxima aula. Minha ansiedade não fica só aí, sempre duvido de que eu realmente tenha entendido qualquer desses pontos filosóficos. Não confio, posso perfeitamente trocar tudo, embananar as palavras fiéis aos conceitos. Não importa, quero mais. Outro dia ouvi um termo ótimo, na ocasião de um simpósio sobre filosofia grega, um pesquisador disse, em crítica aberta a um raciocínio ali exposto: não acha que esse ponto de vista é muita generosidade hermenêutica? Ou seja, o senhor não acha que derrapou na maionese? Escorregar no gel da interpretação está previsto no código dos salões, ainda que não seja aplaudido. Aliás, esses simpósios servem para que você descubra o que está fazendo ali, no meu caso, correr léguas dos convescotes, que não são diferentes de qualquer evento formal e petrificante. Não há nada melhor que uma boa sala de aula, sentar-se lá na frente e entregar minhas maçãs aos mestres, com eles devidamente à vontade e não colocados à prova em discussões vaidosas. Mas e a literatura? Problema é que virou um esforço danado sair desse ambiente para o da escrita literária, no recanto do lar, onde meu jeito de falar e escrever é uma prisão perpétua. Sempre eu mesma, ou a partir da minha voz. Estou na fase da escuta, não da fala e da escrita. Quando leio literatura, tenho o vício de ator que assiste ao filme pensando na grua utilizada na cena. Lendo filosofia, não faço ideia de onde surgiu a câmera, tão densa é sua estrutura. Fazia tempo que não me perdia, ainda me parece perigoso pensar sobre o pensamento, outro problema é a validade desse pensar que se diz fora do pensamento. Defina validade, defina pensar, defina fora, defina definir, defina definir o definir. Jogo de espelho ao infinito brabíssimo. Vez ou outra, um professor adoece, sei de um ótimo aluno que teve estafa mental e outros que se perderam em labirintos. Não é à toa que a filosofia já esteve fechada em círculos secretos, onde se preparava o iniciante por anos antes que lhe fosse passada a ideia do conhecimento. Sentidos provisórios na busca dos definitivos, ou sentidos provisórios a priori na busca do próprio sentido. Esse rito, sem ritual, tem me deixado deprimida. Mas recuso resgate, vou cair um pouco mais nessa lama. Ou a filosofia é tudo isso, ou é mais um gênero literário (não que isso a diminua, ao contrário).
Ah, Andréa… Você tá me deixando com uma vontade de fazer Filosofia! Ainda pensando… ainda pensando… Se você for a culpada, depois te conto. ;) Beijos!
Sens! Você ia pirar na filosofia, a literatura vira uma bolinha de gude. Beijos!!!
(o)fusca, assim, de olhos atentos(?)
Sempre que te vejo… que te leio… que te ouço, sei lá… a esfera sob teus pés me faz crer que o formigamento é fervura.
A gente precisa colocar fervura num café, isso sim :)
Clap! Clap! Clap! Amei! Lúúúcida! Trans-lúcida! Recebeu meu e-mail? Gostou do livro?
Só você! Trans-lúcida. Menina, ando tão atrapalhada que não sei te dizer se recebi o email. Adorei muito sua presença lá no Malaquias. O livro rosa está em cima da minha escrivaninha, ainda não entrei nele de vez. Beijos!
que vontade de estudar junto com vc! raum!
Vamos?
Se perca, se encontre, se joge nessa lama. Belo texto!
Obrigada :)
adoro estudar.
É o que há.
oi, Andrea! Sou estudante de biologia, licenciatura, meio do ano passado, quando comecei o estágio, primeira coisa, fui na biblioteca, catei a coleção literatura para todos, dois Quixotes, O Memorial do Convento, Capitães da Areia e Dôra Doralina. Começei a leitura pela coleção, e na ordem em que eram apresentados no volume explicativo. Acho que foi no terceiro livro, tomei uma porrada na cabeça, conheci a Índigo. Fiquei em estado de choque uns oito meses, a pessoa então, a Índigo, deve ser de outro planeta e para nossa sorte acabou o nitrogênio aditivado da nave quando ela passava por aqui. A literatura da ìndigo me deu tanto, tanto, que eu achei que não podia haver mais nada depois dela. Mas num universo de 6 bilhões de seres humanos, resolvi colocar a índigo no lugar mais especial que podia haver nas minhas lembranças (penso nela todos os dias, agora ela deu uma pausa no blog, só volta em outubro) e resolvi esgarçar mais um pouco a mente, forçando as beiradas do rombo feito pelo meteoro Ayer, e li Saramago, e Jorge Amado, e Rachel, e Lygia Bojunga. O Saramago li duas vezes, estava me preparando para ir a nado me declarar a ele em Portugal, foi na semana em que ele partiu, fiquei achando que foi culpa minha, já que eu tenho um histórico de amor platônico por escritores mortos. Horrível né? Aí indagora assisti a uma entrevista com uma mulher incrível, A Heloisa Buarque, e ela citou você, e a Índigo também te ama, então assim que eu puder vou ler você. Ai! Já estou louca pelos Malaquias, e queria saber qual foi a experiência religiosa Kairós que você experimentou. Desculpe encher teu saco, eu não bebi, é que falo demais assim mesmo. Acho que vou ser sua fã quando te conhecer (a sua literatura, de escritor já sou fã de graça, e isto você já é). Parece que você pensa como uma bala em pleno curso, o pensamento reto, forte, ágil e com alvo certo. Vou avaliar melhor, até agora só li^os três primeiros posts. Beijo no seu cérebro, Heloisa.
Heloisa, somos duas que simplesmente PIRAM com a Indigo. Minto, somos muitos, ela é o máximo, única nesse turbilhão de palavras. Fale sempre, fale muito, vamos que vamos! Um beijo. (vou mandar essa mensagem para a Indigo).
Cogita!Cogita!Cogita ergo… sum?
Um beijo imanente!
Guilherme, querido, você bem sabe o que é isso :) Beijo!!!
Andréa querida,
Eu ainda me sinto na fase da escuta, mesmo sabendo que já estou na fase da escrita. Tenho apenas seis meses para concluir a minha pesquisa de mestrado e defender a minha dissertação.
E nessa altura do campeonato resolvi pagar uma disciplina Antropologia do Corpo e da Saúde. O mais complicado é que os primeiros textos são de filosofos ou são, como posso dizer, muito filosoficos. Saio da aula agoniadissima. Li um texto do Peter Pál Pelbart, Direitos Humanos e Cyber-Zumbis. Vou ter que ler de novo.
Você vai tirar todas essas disciplinas de letra. Você tem as letras, a linguagem, o símbolo, o signo, o significante, o significado. hahaha
cheiros
Flor de Liz, vou correr atrás desse texto do Peter que você citou, só o título já é aperitivo. Antropologia do Corpo e da Saúde parece irrecusável, óbvio que você ia pegar a disiciplina. Você vai escrever seu mestrado em dois tempos, e com tudo isso. Cheiros!!!
Olá Andréa!
Escrevo para dizer que Adorei Suas “anotações do caderno escolar”! De tempos em tempos passo por aqui, para uma visita – desde de outras eras (blogspot). E confesso que estava sentindo falta de um Texto Mais Pessoal Seu (posso ser sincero? ultimamente isso aqui estava mais para um blog de propaganda). Enfim, Aprecio Muito Esse Seu Lado Mais Intimista. Você Manda Muito Bem! Acho bacana o fato de Você estar travando esse embate com a Filosofia. Penso que para escrever é preciso mesmo acumular o máximo de bagagem intelectual e experiências de vida. Desejo-Te Muito Sucesso no Seu Curso! Que este seja desafiador a ponto de catalisar outro desabafo desses; e, ao mesmo tempo, nem tão distante de sua natureza, que faça com que Você desista dele. Beijo! Jorge X
Xerxes, amigo, gracias!
Tô ligada que perdi a vergonha na cara e fiz do blog um mural de propaganda, juro-te que é momentâneo :) Um beijo enorme.
Andrea!!!
perdi o fôlego lendo isso!
em vários momentos, principalmente no final, senti que é como a minha relação com a antropologia…
Só imagino que a filosofia deve ser uma piração ao quadrado…Acho que não acompanho…rs!
Perda-se! Pois uma vez nesse emaranhado de idéias novas, achamos o sentido de algumas coisas e perdemos o porquê de outras, mas é sempre muito bom!
=)
beijos
Queridíssima! Menina, é piração ao quadrado mesmo, a ponto de liquidificar os miolos. Um gira-gira para adultos :) Beijos, beijos!
Nossa, como gostei desse trecho: “Quando leio literatura, tenho o vício de ator que assiste ao filme pensando na grua utilizada na cena. Lendo filosofia, não faço ideia de onde surgiu a câmera, tão densa é sua estrutura.” Eu que tenho o vício pela filosofia e literatura caminho entre ambos com arbitrariedade – eu penso…
Gostei do texto Andréa, inté!
Obrigada, Raphael! Essas linguagens são tão misteriosas, a literatura e a filosofia, mas de um jeito tão denso que era até para desistirmos delas. Beijos!
É minha primeira vez no seu blog… Tem sido minha primeira vez em muitas coisas. Amo gente inteligente, dedicada, que ama ler, escrever, que não para… Você é puro movimento, está sendo uma delícia estar aqui, porque você fala de livros, mundos, universos, que ainda quero penetrar, conhecer e viver. Lendo seus textos percebo que estou apenas engatinhando na arte de unir palavras, elaborar frases, ganhar um estilo… Mas que maravilha é poder descobrir um pouco mais do outro e crescer com isso!!! Prazer!
Jéssica, o prazer é meu :) Obrigada pela visita e as palavras, beijocas!!!!!!